|
Janaina Portela, 19, que morreu em incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, tinha ido trabalhar no lugar da mãe |
Janaína Portela, 19, não era estudante universitária e nem tinha saído de casa para se divertir quando encontrou a morte. Pobre, moradora da periferia de Santa Maria, em um bairro com o nome inspirador de Chácara das Flores, Janaína nem era para estar na boate Kiss na noite de sábado para domingo.
Estava porque a mãe dela, Natalícia Moraes da Silva, 53, empregada como lavadora de copos da boate, naquele dia não estava se sentindo bem. Era um mal-estar generalizado por todo o corpo.
Como já havia acontecido outras vezes, a mãe pediu à filha que fosse trabalhar em seu lugar. Janaína foi. Sem carteira e sem contrato.
Ontem no começo da tarde, o corpo da menina foi enterrado no cemitério de São Martinho da Serra, cidadezinha ao lado de Santa Maria.
Da Chácara das Flores saíram vans, cinco carros e um ônibus cheio de vizinhos (75 ao todo), para o enterro.
Janaína, dizem seus amigos, até havia conseguido fugir da boate em chamas. Mas preferiu voltar, para ajudar no salvamento de conhecidos.
"Ela saiu e voltou uma vez, duas. Na terceira, não saiu mais", diz a investigadora de polícia Fátima Nascimento, 32, que estava no local a trabalho (ela apurava a infiltração de menores e o tráfico de drogas).
"Sinto um remorso imenso por não ter conseguido voltar, como a Janaína fez, para resgatá-la. Nem que eu tivesse perdido a vida, eu deveria ter voltado ainda uma vez", disse a policial, curativos espalhados no pescoço, braços e mãos, além de marcas de queimaduras nas costas.
Fátima fala com um fiapo de voz. Ainda tem a garganta queimada pela fumaça.
A mãe Natalícia exime Kiko Spohr, um dos donos da Kiss, de responsabilidade na morte da filha. "Ele sempre nos ajudou em tudo o que pode. Já emprestou dinheiro, quando necessitamos; ele é um homem maravilhoso. Se ele está comendo um doce, e você está sem, ele divide."
"A pessoa está tomando água, engasga e morre. A culpa é da água? Não. Foi Deus quem quis essa pessoa ao seu lado", diz ela, entre soluços, o rosto banhado em lágrimas.
SEM PERDÃO
O outro filho de Natalícia, Fábio, 24, diz que a mãe não para de se culpar pelo que aconteceu. "Que mãe não desejaria morrer no lugar? Mas aconteceu justo o contrário".
Fábio, que hoje trabalha em Florianópolis, Santa Catarina, como padeiro, era o protetor de Janaína, que nasceu com apenas 6 meses de gestação (tinha 25 centímetros de comprimento).
Ainda um garotinho, ia todos os dias à maternidade visitar a irmã na incubadora. Conversava com ela, para animá-la a lutar pela vida.
Mais tarde, como a mãe trabalhasse todo o tempo, era ele quem saía para comprar roupinhas para a menina.
No domingo, quando soube do incêndio na boate, Fábio pegou um carro emprestado e percorreu sozinho, em 9,5 horas, os 773 km que separam a capital catarinense de Santa Maria.
Chorava, rezava para encontrá-la "ferida, mas viva", nem enxergava direito a estrada.
Quase chegando, recebeu o telefonema da mãe avisando que o corpo da irmã tinha sido localizado. "Foi como se arrancassem o meu coração."
Ao contrário da mãe, ele não perdoa o dono da Kiss: "É muita ganância. Se fosse o filho dele que tivesse perdido a vida assim, o que ia pensar?"
Janaína se formou em 2012, no ensino médio, queria ser veterinária. "Ela nunca se cansava. Estava sempre disposta a ajudar os animais, as crianças, quem necessitasse", lembrou uma
amiga no enterro.
No sábado, foi visitar a avó. "Vem aqui amanhã", pediu-lhe a velha. "Não sei se vai dar", respondeu a neta, abraçando-a. Antes de sair para trabalhar, a menina limpou toda a casa. Os vizinhos interpretam agora como um sinal. "Ela sabia", diz a amiga.